terça-feira, 10 de abril de 2012

A matriarca do lixão: Dona Geruza é a Mãe Lucinda, de “Avenida Brasil”, da vida real


No lixão de Gramacho, crianças abandonadas pelas famílias eram chamadas de "tapurus de rampa" — tapuru é o nome dos vermes nascidos em detritos. Mas Dona Geruza Maria dos Santos, de 62 anos, dos quais 26 de "guerra com o lixo", nunca viu bichos. Viu filhos. São mais de cem. Se a mãe Lucinda de Vera Holtz amassou o coração do Brasil na primeira fase da novela das nove ao adotar a pequena Rita (Mel Maia), sua décima terceira protegida, o que dizer de Dona Geruza, que, na vida real, criou oito filhos naturais, abrigou 15 e ainda ofereceu casa, colo e carinho para dezenas de famílias de catadores? É a matriarca do lixão.
Face revelada
Pernambucana arretada, viúva há cinco anos do portuário Carlos, pai dos seus oito meninos e único "namorado" na vida, Geruza foi a primeira catadora de lixo a mostrar o rosto para uma equipe de TV. Quando jornalistas chegavam a Gramacho, todos se escondiam por vergonha. A matriarca ensinou aos filhos que a vida de catador podia ser desumana, sim. Mas, nunca, desonrosa. Então, não poderia se esconder. E nem esquecer a lição dada à repórter que lhe perguntou qual era a sensação de trabalhar com lixo:
— Médico faz autopsia, você pergunta se ele está satisfeito? Por que pergunta isso para mim? — disparou.
No outro dia, encontrou o filho Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, então com 15 anos, chorando. Os colegas da escola tinham descoberto que ele era filho da "chepeira". Catador é palavra fruto de nossos tempos politicamente corretos. O adolescente lia insultos escritos no quadro-negro da escola.
— Aquele foi meu último dia de paz. Sofri bullying— conta Tião, de 33 anos, hoje presidente da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (Acamjg).
Filho da mulher que mostrou a face dos catadores na TV, em rede nacional, Tião levou o Jardim Gramacho para o tapete vermelho. Ele é um dos personagens do documentário "Lixo extraordinário", sobre o trabalho do artista plástico Vik Muniz com os trabalhadores do aterro. O filme foi indicado ao Oscar no ano passado.
— Quando vi meu filho de smoking, no Oscar, pensei: "Jesus, a nossa história está toda ali" — exultou Geruza, a mulher capaz de recolher vidas do abandono.
Do lixo ao sex shop
Catadora dos 10 aos 15 anos, Luciana Bandeira, de 37, hoje é vendedora do tipo "frango com tudo dentro". Aceita encomendas de roupa de cama, vestuário, calcinhas e até vibradores e outros produtos de sex shop. Sobrinha de Geruza, ela se orgulha de pagar colégio particular para os três filhos. Frisa que eles têm computador, fazem curso de inglês e dormem "cada um no seu quarto".
— Quero proporcionar um futuro para eles. Nossa vida era difícil. Dormiam quatro, cinco crianças na mesma cama — lembra Luciana, que começou a profissão organizando um brechó de peças recolhidas no lixão.
— Quando fiquei desempregada, conversei com meu marido e voltei a ser catadora. Achava muita roupa de madame. Sapato de salto, terninho, coisa com etiqueta. Decidi fazer um brechó. Há dois anos, deixei de ser catadora.
Soluções criativas não faltavam num aterro sanitário. Mulheres cravavam as unhas nos pedaços de melancia para perfumar as unhas durante o trabalho duro. Se o chão "explodia" — pela ação do gás expelido pela degradação do lixo —, o fogo gerado aquecia panelas com a sopa de entulho. Nada era perdido.
— Quando a gente era criança, catava os biscoitos que os supermercados descartavam. Eram quebrados, mas fechados. Ninguém contava na escola de onde vinham. Era nosso segredo — conta.
Tesouros
Histórias de tesouros no lixão não faltam. "Uma vez, uma empresa jogou todo o malote de pagamento no lixo por engano. Mas sabiam qual tinha sido o caminhão. Torcemos para que não achassem o dinheiro, mas acharam. Teve também o Baiano, que achou uma fortuna em dólares escondida em latas de leite. Ele nem sabia que aquilo era dinheiro de verdade. Um comerciante avisou e ele voltou para a Bahia. Ficou rico", conta Glória Santos, filha de Geruza.
Preconceito
O único vilão do aterro era o preconceito. "O pessoal das casas construídas em Gramacho não usava nem o mesmo ônibus que a gente", lembra Tião. "Se a gente chegasse na praça de Gramacho, chamavam de urubu. E agrediam mesmo, ameaçavam. A gente não podia ir lá", lembra Márcio de Oliveira, de 23 anos.
Bonecas
Aos 8 anos, Glória e Luciana andavam até uma hora para entrar no aterro por uma passagem secreta. Crianças eram proibidas. As meninas encontravam tesouros no lixo, como bonecas da Xuxa. E tomavam banho no mangue. Para que os guardas não as vissem, Geruza as escondia em pequenos barris e os cobria de lona. "O aterro da novela é cinzento demais. Criança não vê assim. A gente se divertia. Só na adolescência percebemos que era lixão", diz Luciana.


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